segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Os Tristes dias do nosso Infortúnio


Baptista Bastos - b.bastos@netcabo.pt
    O dr. Cavaco consumiu vinte minutos, no Centro Cultural de Belém, a esclarecer os portugueses que não havia português como ele. Os portugueses, diminuídos com a presunção e esmagados pela soberba, escutaram a criatura de olhos arregalados. Elogio em boca própria é vitupério, mas o dr. Cavaco ignora essa verdade axiomática, como, aliás, ignora um número quase infindável de coisas.
     O discurso, além de tolo, era um arrazoado de banalidades, redigido num idioma de eguariço. São conhecidas as amargas dificuldades que aquele senhor demonstra em expressar-se com exactidão. Mas, desta vez, o assunto atingiu as raias da nossa indignação. Segundo ele de si próprio diz, tem sido um estadista exemplar, repleto de êxitos políticos e de realizações ímpares. E acrescentou que, moralmente, é inatacável.
     O passado dele não o recomenda. Infelizmente. Foi um dos piores primeiros-ministros, depois do 25 de Abril. Recebeu, de Bruxelas, oceanos de dinheiro e esbanjou-os nas futilidades de regime que, habitualmente, são para "encher o olho" e cuja utilidade é duvidosa. Preferiu o betão ao desenvolvimento harmonioso do nosso estrato educacional; desprezou a memória colectiva como projecto ideológico, nisso associando-se ao ideário da senhora Tatcher e do senhor Regan; incentivou, desbragadamente, o culto da juventude pela juventude, característica das doutrinas fascistas; crispou a sociedade portuguesa com uma cultura de espeque e atrabiliária e, não o esqueçamos nunca, recusou a pensão de sangue à viúva de Salgueiro Maia, um dos mais abnegados heróis de Abril, atribuindo outras a agentes da PIDE, "por serviços relevantes à pátria." A lista de anomalias é medonha.
     Como Presidente é um homem indeciso, cheio de fragilidades e de ressentimentos, com a ausência de grandeza exigida pela função. O caso, sinistro, das "escutas a Belém" é um dos episódios mais vis da história da II República. Sobre o caso escrevi, no Negócios, o que tinha de escrever. Mas não esqueço o manobrismo nem a desvergonha, minimizados por uma Imprensa minada por simpatizantes de jornalismos e por estipendiados inquietantes. Em qualquer país do mundo, seriamente democrático, o dr. Cavaco teria sido corrido a sete pés.
    O lastro de opróbrio, de fiasco e de humilhação que tem deixado atrás de si, chega para acreditar que as forças que o sustentam, a manipulação a que os cidadãos têm sido sujeitos, é da ordem da mancha histórica. E os panegíricos que lhe tecem são ultrajantes para aqueles que o antecederam em Belém e ferem a nossa elementar decência.
    É este homem de poucas qualidades que, no Centro Cultural de Belém, teve o descoco de se apresentar como símbolo de virtudes e sinónimo de impolutabilidade. É este homem, que as circunstâncias determinadas pelas torções da História alisaram um caminho sem pedras e empurraram para um destino que não merece - é este homem sem jeito de estar com as mãos, de sorriso hediondo e de embaraços múltiplos, que quer, pela segunda vez, ser Presidente da nossa República. Triste República, nas mãos de gente que a não ama, que a não desenvolve, que a não resguarda e a não protege!
     Estamos a assistir ao fim de muitas esperanças, de muitos sonhos acalentados, e à traição imposta a gerações de homens e de mulheres. É gente deste jaez e estilo que corrói os alicerces intelectuais, políticos e morais de uma democracia que, cada vez mais, existe, apenas, na superfície. O estado a que chegámos é, substancialmente, da responsabilidade deste cavalheiro e de outros como ele.
    Como é possível que, estando o País de pantanas, o homem que se apresenta como candidato ao mais alto emprego do Estado, não tenha, nem agora nem antes, actuado com o poder de que dispõe? Como é possível? Há outros problemas que se põem: foi o dr. Cavaco que escreveu o discurso? Se foi, a sua conhecida mediocridade pode ser atenuante. Se não foi, há alguém, em Belém, que o quer tramar.
    Um amigo meu, fundador de PSD, antigo companheiro de Sá Carneiro e leitor omnívoro de literatura de todos os géneros e projecções, que me dizia: "Como é que você quer que isto se endireite se o dr. Cavaco e a maioria dos políticos no activo diz 'competividade' em vez de 'competitividade' e julga que o Padre António Vieira é um pároco de qualquer igreja?"
     Pessoalmente, não quero nada. Mas desejava, ardentemente desejava, ter um Presidente da República que, pelo menos, soubesse quantos cantos tem "Os Lusíadas."
       b.bastos@netcabo.pt

3 comentários:

Piko disse...

Baptista Bastos escreve em português como mais ninguém o faz, e, depois, tem as memórias intactas onde não se lhes nota o encurtamento, como tantas vezes acontece aos portugueses...
Em Democracia os factos não devem ser escondidos debaixo do tapete, que é o que acontece com os amiguinhos a puxar para o mesmo lado, que foi o lado que levou este país para a actual situação e que ainda por cima foi escondida durante anos!
Se houvesse seriedade intelectual e depois das más provas dadas como primeiro ministro e como presidente da República, Cavaco retirava-se com os direitos a que tinha direito, mas esta gente é insaciável quando chega ao poder! E não é o único, porque o "paizinho" do regime saído do 25 de Novembro e que se chama Mário Soares, tentou pela 3ª vez chegar a Belém, um erro político de principiante, que pôs a nu as vistas curtas de quem teve todas as condições para ser um bom político, uma vez que foi levado ao colo por largos sectores da sociedade portuguesa, mas só teve a fama e quem perdeu foi o país...
Obrigado conterrâneo e amigo pela publicação do artigo de Baptista Bastos a quem tínhamos perdido o rasto...
PIKÓ

Valdemar disse...

Duranta a leitura encontrei-me com palavras que francamente não sabia da sua existência... Mas Alto Lá com a Obra!... Este senhor não tem papas na língua e foi sem dúvida a melhor descrição que li até agora do Cavaco, o tal PR que só se lembra dos nossos emigrantes... quando precisa deles!
Valdemar Alves

Edum@nes disse...

Concordo que sejam dstinguidas algumas personalidades da nossa sociedade. No entanto, por vezes exagera-se em demasia?
Diz-se que dos fracos não reza a história. Porém acontece que a maioria das condecorações. São atribuidas a quem as não merece, porque nada fizeram para as merecerem.
Muitos foram e continuam a ser traidores do nosso povo.
Já alguma vez se condecorou uma pessoa que defende os interesses dos trabalhadores?
Com isto não quero ofender Baptista Bastos, pessoa pela qual tenho muito respeito.
Eu digo as verdades, e só as verdades. Odeio as mentiras, melhor dizendo, não gosto das pessoas que mentem.